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Wednesday, February 17, 2010

A página negra que o mundial vai abrir para a SADC



Este ano, a “Nação Arco Irís”, a África do Sul, vai acolher o Campeonato de Mundo em Futebol, prova que se realizará, pela primeira vez, no continente africano. Mil razões para todos os países da região sorrirem, afinal a indústria turística poderá conhecer o seu auge, o que é bom do ponto de vista de receitas financeiras. Moçambique, por exemplo, espera receber mais de 100 mil turistas. E já começou a organizar a indústria hoteleira e a projectar os encaixes financeiros. Estimativas indicam que os países da SADC, sem contar com RSA, receberão cerca de 500 mil turistas. Mas nem tudo vai ser um “mar de rosas”, já que espera-se que, com este turismo, o tráfico de crianças e de mulheres também aumente, para alimentar, quer o turismo sexual, em zonas como Kwazulu Natal, Durban e Cape Town, quer o trabalho barato nas farmas, bares, restaurantes, guest houses e hoteis naquele país, o que acontecerá como uma resposta “natural” ao evento de 2010.

Mais de duas mil crianças, a maioria das quais do sexo feminino, e mulheres são traficadas por ano em Moçambique. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), na região da SADC, o número atinge cerca de duzentas mil por ano. Os destinos são variados, mas a África do Sul, o íman da região, ocupa o primeiríssimo lugar. Por exemplo, os dados da Child Helpline International (CHI) revelam que mais de 50% das crianças traficadas na região da SADC, destinam-se a RSA. Para o caso de Moçambique, o consenso em relação a este destino é generalizado. Espera-se que, com o advento do Mundial 2010, estas cifras aumentem de forma estrondosa, uma vez que a astúcia dos traficantes os leva a agir em situações de muita agitação e azáfama, ou então em casos de calamidades naturais, desastres ou situações de emergência. “Não podemos prever quantas crianças e mulheres serão traficadas, mas a verdade manda-nos dizer que os números vão aumentar, por isso teremos de ser mais cuidadosos e vigilantes”, afirma a Gestora de Programas da CHI para África, a queniana Alice Mapenzi Kubo.

De acordo com Kubo, o tráfico de crianças e mulheres constitui uma actividade comercial a nível global, orientada pela procura, com um mercado enorme para mão-de-obra barata e sexo comercial, confrontado, muitas vezes, por quadros legislativos e políticas reguladoras insuficientes ou não experimentadas e sem pessoal adequadamente treinado para lhe fazer frente.

As revelações da Alice Kubo não surgem ao acaso. Pesquisas das Nações Unidas (NU) revelaram que “a escravatura de hoje” prospera devido ao alto nível de lucros. Segundo o relatório da Organização Internacional para as Migrações (OIM), Seduction, Sale and Slavery:Trafficking in Women and Children for Sexual Exploitation in Southern Africa, publicado em 2003, esta indústria produz entre entre 7 a 10 mil milhões de dólares ao ano, colocando-se em terceiro lugar em termos de nível de lucros a seguir ao comércio de armas e ao narcotráfico.

Mas ao mesmo tempo, os estados da região, a um nível mais nacional, pouco tem feito para combater o tráfico de pessoas. Por exemplo, dos onze países membros da Southern Africa Network Against Trafficking and Abuse of Children (SANTAC), uma Rede Regional contra o Tráfico e Abuso de Menores, mais da metade ainda não possui instrumentos reguladores desta matéria e quando há casos de tráfico evidentes, debatem-se com a falta de enquadramento legal, acabando por deixar impunes os traficantes. A falta de uma tipificação “criminosa” para casos de tráfico é, de resto, um dos grandes constrangimentos na região. Neste aspecto, Moçambique avançou bastante, uma vez ter já aprovado, por consenso parlamentar, uma Lei Específica contra o tráfico. No caso do crime de tráfico de pessoas, o executivo moçambicano entende que esta Lei deve admitir que o Ministério Público ou qualquer pessoa que tenha conhecimento do facto possa denunciar e prosseguir a acção criminal contra os autores do mesmo. Esta Lei e a sobre o Tráfico de Pessoas, em particular de Mulheres e Crianças, tem por objecto estabelecer o regime jurídico aplicável à prevenção e combate ao tráfico de pessoas, em particular mulheres e crianças, nomeadamente a criminalização do tráfico de pessoas e actividades conexas e a protecção das vítimas, denunciantes e testemunhas.

Das possíveis rotas às razões do tráfico

Uma avaliação levada a cabo pelo jornalisticamente falando, associado a estudos e outras evidências empíricas, mostrou que duas operações distintas de tráfico de pessoas fazem uso de três rotas diferentes para transportar as vítimas de Moçambique para a África do Sul. Segundo um relatório intitulado “Tráfico de Pessoas em Moçambique: Causas Principais e Recomendações” publicado pela UNESCO em 2006, a primeira rota usada é para Gauteng através de Ressano Garcia (fronteira comum). Com base na pesquisa efectuada de Janeiro a Fevereiro de 2006, de um total de 2.560 pessoas traficadas, 1282 mulheres e 563 crianças foram contrabandeadas para a África do Sul através da fronteira dos Libombos ou de Ressano Garcia.

A segunda rota de tráfico que introduz mulheres, tanto para as províncias de Gauteng como do KwaZulu-Natal atravessa a fronteira de Ponta de Ouro para a África do Sul. O transporte continua então para o sul da Suazilândia e directamente para Joanesburgo e Pretória, ou rumo a sul em direcção a Durban e Pitermaritzburg. Pensa-se que a facilidade de acesso por parte dos traficantes a estas rotas seja resultado da sua ligação com grupos criminais organizados que negoceiam outras mercadorias como por exemplo viaturas roubadas.

Em terceiro lugar, as rotas no interior de Moçambique incluem tipicamente a entrada para o norte do país através da Tanzânia e/ou do Malawi por pessoas que vêem da região dos Grandes Lagos Africanos e da África Ocidental. Outros, que porventura viajem por mar, podem desembarcar nos portos moçambicanos antes de continuarem a jornada por terra. Ainda no interior do País, grande destaque vai para as fronteiras entre Moçambique e Zimbábwe, nomeadamente em Manica e Gaza. A fronteira de Chicualacuala, em Gaza, é descrita como sendo das mais vulneráveis. Em todas as quartas-feira, um comboio de passgeiros ligando estes dois países cruza esta fronteira e transporta milhares de pessoas, regra geral pouco controladas. Há evidências de que algumas sejam vítimas de tráfico. O exemplo elucidativo é o das três meninas que em 2008 foram encontradas perdidas na região de Chókwè, na mesma província, depois de se terem escapolido do comboio na estação central em Chókwe, onde este transporte pára por muito tempo durante a noite. O destino era incerto, mas havia sérias indicações de que era a África do Sul.

O íman regional

Moçambique é somente um dentre um número estimado de 10 países, nomeadamente, Angola, Botswana, RDC, Lesotho, Malawi, Moçambique, Suazilândia, Tanzânia, Zâmbia e Zimbabwé (agravado pela crise política e económica) que abastecem o mercado de tráfico de pessoas que fornece a África do Sul, o íman regional. Um relatório sobre o tráfico de crianças na África do Sul, apresentado pela organização Molo Songololo no ano 2000, sugere que existem mais de 20 mil crianças trabalhadoras, muitas delas refugiadas moçambicanas, a trabalhar em fazendas agrícolas onde recebem pagamentos miseráveis e trabalham em troco de alimentação
e alojamento. A Molo Songololo é uma organização Sul-africana que, desde os anos do Apartheid, possui publicações sobre tráfico de crianças na RSA. Passam já oito anos depois da publicação deste relatório, o que sugere que os números podem ser bem maiores. De acordo com a OIM em Pretória, 25% das prostitutas da Cidade de Cabo são crianças e provém de diferentes países da região. A OIM acrescenta que “a África do Sul pode oferecer alojamentos e estruturas de primeiro mundo, e isso chama a atenção do turismo ocidental e, infelizmente, também do turismo sexual”.
Mas o que terão feito essas crianças e mulheres para serem traficadas ou para merecerem tal destino? Esta é uma questão recorrente. Mas nunca foi encontrada uma resposta satisfatória, ou seja, que pelo menos justificasse tanta barbaridade. Há meses, questionava-se, em Moçambique, o que teriam feito as raparigas que foram traficadas pela famosa Diana, também moçambicana, para África do Sul, onde foram sexualmente escravizadas numa vivenda luxuosa em Santon. Nada! Descoberta por um moçambicano residente na mesma região, o caso acabou sendo do domínio popular e a Diana teve que ser presa pela polícia sul-africana, estando agora em julgamento. Mas pesquisas feitas chegaram, quase todas elas, às mesmas constatações: que a pobreza é a principal força motriz desta actividade comercial, empurrando as pessoas marginalizadas para as mãos dos traficantes. O HIV/SIDA, as calamidades naturais, também são outras causas, bem como a descriminação baseada no género, as práticas culturais e o fenômeno da emigração para a “terra do rand”, principalmente na região sul de Moçambique

Tentar cortar o mal pela raíz

“Cortar o mal pela raiz seria criar condições para que as pessoas não se sintam afectadas pela pobreza, seria criar o “empowerment” da mulher, seria permitir que todos os direitos das crianças fossem respeitados, desde o direito à educação, até ao direito a brincar; seria criar condições para que os órfãos de parentes vítimas de HIV/SIDA fossem considerados e tivessem o devido acompanhamento”, afirma a representante da CHI.
Mas isso dificlmente acontece, principalmente porque as políticas governamentais não assumem esses aspectos como prioritários. Mesmo sabendo das dificuldades que terão de enfrentar, nomeadamente, no concernente a questão da legislação, muitas organizações da sociedade civil, em parceria com a SANTAC, já estão a desenvolver esforços para sensibilizar os seus respectivos governos a incluir a questão do tráfico, como um “cross-cutting issue”, na preparação que está a ser feita para o Mundial 2010.
“Não devem olhar apenas aos ganhos referentes ao turismo, mas também que olhem para esta questão social”, disse Tonniete Marrengula, uma activista social. Pena é que se trate de uma acção que apenas envolve organizações da sociedade civil, cujas decisões não assumem carácter vinculativo, servindo apenas como grupos de pressão. Os Governos regionais, que possuem todos os mecanismos, incluindo os legais, bem como elevada manobra de pressionar o “legislativo” a aprovar leis com maior celeridade, tem sido os grandes ausentes nestes debates. “E mesmo que haja interesse por parte das Organizações da Sociedade Civil (OSC), isto não será fácil porque os criminosos continuarão impunes, enquanto não existirem leis para o efeito. E o mundial está já à porta”, acrescenta a nossa fonte.
Foi para debater essa questão e preparar possíveis cenários para prevenir o tráfico durante o Mundial 2010 que a SANTAC região africana esteve reunida em Maputo, nos princípios de Dezembro de 2009, tendo aproveitado o momento para apelar a toda a sociedade da SADC para que fique cautelosa durante a copa do mundo. A Organização Internacional para as Migrações (OIM), por exemplo, está a desenvolver programas que visam combater o tráfico de pessoas em Moçambique. O Programa de Assistência contra o Tráfico na África Austral (SACTAP), da OIM tem como objectivo prevenir o tráfico de pessoas e prestar assistência necessária às pessoas traficadas a nível da SADC. Ao mesmo tempo, o programa apoia os intervenientes governamentais e não governamentais a desenvolver as suas capacidades com vista a combater efectivamente o tráfico humano. Nelly Chimendza, Coordenadora do Projecto da OIM tem estado a organizar seminários de capacitação ao longo das regiões do País, envolvendo a Polícia da República de Moçambique (PRM) e os educadores sociais. Muito recentemente, a OIM organizou duas capacitações, tendo sido um em Maputo e o outro em Gaza, duas províncias do Sul de Moçambique. Espera-se que um terceiro se realize na região centro do País. A OIM em Maputo tem estado a dar todo o acompanhamento das vítimas de tráfico na região.

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